No Hospital

Livros em uma mesa

NO HOSPITAL

Já tentei várias vezes pintar o quarto do hospital. Desenhar a cama, o ar, a luz ou a falta dela.
Há momentos em que tudo está embaciado…não se consegue bem perceber o que nos sugou para aquela realidade. Descemos à subcave da vida, sem termos descido qualquer lanço de escadas nem carregado num qualquer botão de elevador.
Alguém nos puxou. Alguém nos puxou e a porta abriu-se naquela sala cheia de máquinas que apitam por todo o lado, assinalando a fragilidade humana. E numa chapada, num estalo na cara bem forte e sonoro, mas que nem nos abala o físico de tão surreal que parece, ali estamos, de pé, hirtos e expectantes.
Sugados para um ringue de boxe, vamos entrar em jogo e ninguém nos perguntou se queríamos. Prepararam-nos o maior dos confrontos e marcaram-no para agora.
Depositaram-nos ali e defrontamo-nos com efemeridade da vida. Dura, crua, forte, desafiadora. Fita-nos do outro lado do ringue.
Soam a campainha, há torcedores na bancada. Dum lado, estamos nós à cabeceira da cama, vergados sobre os joelhos, de rugas vincadas pela preocupação, lavados, esfregados em lágrimas, a segurar a mão da nossa referência de vida; do outro, o desconhecido, a anónima névoa ameaçadora que paira sobre aquela cama, aquele quarto, aquele hospital, aquela caverna.
É ali, no fundo daquele poço e sem qualquer preparação, que vamos jogar com toda a nossa coragem, com a nossa maior força, toda a nossa resistência.
É um combate duro.
Sentados na poltrona do hospital ouvimos o esforço para respirar, enquanto seguramos a mão de quem demarca a linha central do campo de batalha. E puxamos a corda dia após dia, hora após hora, minuto a minuto, sem largar, sem desistir, a acreditar sempre que somos capazes de vencer esta luta, de puxar este corpo para o lado de cá. E concentramo-nos nisso, com todos os poros do nosso corpo, com todos os pensamentos da nossa mente. E focamo-nos nisso sempre que entramos, de manhã cedo, naquela realidade escondida entre quatro paredes erguidas bem alto, qual forte de muralhas grossas, que divide a nossa vida de hoje da nossa vida de ontem, para onde damos um passo e saímos ao fim do dia, esgotados pelos milhares de segundos de luta.
E cá fora, a vida feita de nuvens, em que andam a pisar nenúfares, tão leves, cuidadosos para que não se afundem e mantenham a beleza do lago onde pairam.
E de novo lá dentro, no raiar da manhã, esperançosos com o novo acordar. E de novo o cheiro, o silêncio, o ar denso, o pulsar dos leitores, o som de oxigénio que custa a entrar, o cheiro a éter e a latex, a moleza dos corpos parados.
E de novo a linha visível, a luta em cada corpo. Tantos jogos de corda quantas camas ocupadas. Dum lado puxa a força que promete descanso, com a paz de quem não sente dor, com a luz de quem alcança por fim a saída, o chilrear dos passarinhos. Do outro voltam a puxar os que acreditam que ainda há tempo, que precisam de mais, que prometem mais, que gritam o quão são capazes, que jogam o tudo ou nada nas palavras, nos actos e nas omissões, que esperam, que rezam, que vigiam, que cuidam, que suspendem as vidas até conhecerem o desfecho, que querem voltar a saltar nos nenúfares e acreditam que não serão capazes de atravessar o lago desacompanhados e que, acima de tudo, têm medo de nunca mais verem o lago cheio. Um medo aterrador na espera, um desespero completo na ignorância.
Lá dentro, a força com que se jogam todos os segundos, sem fraquejar. Cá fora, a mais directa e proporcional fragilidade humana na normalidade dos outros.
Pessoas a andar na rua, carros a respeitar o sentido da via, transportes a levarem pessoas do trabalho para casa e de casa para o trabalho de novo. Os peões a pararem nas passadeiras. As velhinhas a conversar à janela. As mulheres a vender castanhas. A adolescente a ouvir música enquanto masca pastilha elástica. O avião a aterrar sem qualquer problema. O sol a raiar como se nada fosse. A lua a aparecer como sempre. E a terra que teima em continuar a girar…
E tentamos que o mundo pare e lute connosco, porque somos fracos para lutar sozinhos, mas continuamos sem gritar ao mundo, porque nos fortalece esta roda-viva dos vivos. Esta fragilidade e força que coexistem, em nós.
E está tudo bem, porque de certa forma essa vida dupla acalma-nos.